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Supremo garante vida indígena no Brasil, mas ameaças continuam

Supremo garante vida indígena no Brasil, mas ameaças continuam

Decisão de 21 de setembro foi “histórica”. Servirá de precedente regulatório para os processos judiciais pendentes que envolvem 226 dos territórios indígenas questionados, segundo dados do próprio STF.

POR MÁRIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – “Sabemos que vencemos uma batalha, mas ainda temos uma guerra pela frente”, alertou a advogada indígena Cristiane Baré sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que rejeitou a mais grave ameaça jurídica à sobrevivência dos indígenas povos do Brasil, o chamado “marco temporário” para a concessão de terras.

A “vitória” foi comemorada pelos quase 600 indígenas que acamparam em Brasília para acompanhar as duas sessões da mais alta corte, encerradas com uma votação considerada histórica no entardecer da quinta-feira, 21.

Por nove votos a dois, chegou ao fim um pesadelo que custou a vida de muitos indígenas desde 2009, quando surgiu a “tese” de que os indígenas só teriam direito às terras que ocuparam fisicamente em 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a atual Constituição brasileira.

A tese é inconstitucional, consideraram os juízes do STF, com exceção dos dois indicados pelo ex-presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, radicalmente contrários aos direitos indígenas e cujo governo (2019-2022) agiu de forma genocida, de acordo com muitos juristas. Pesam contra o ex-presidente acusações de genocídio contra povos indígenas, que são investigadas pelo Tribunal Penal Internacional e pelo Ministério Público brasileiro.

Origem do pesadelo

Paradoxalmente, o “marco temporário” nasceu de uma decisão do mesmo Supremo Tribunal Federal, quando considerou legal a demarcação do território Raposa Serra do Sol, no norte do estado de Roraima, pondo fim, em 2009, a uma disputa judicial de mais de uma década.

Um argumento, então chamado de “condicionamento”, era que os diversos municípios beneficiários ocupavam as terras demarcadas em outubro de 1988. Isso se tornou regra e vários tribunais, inclusive o STF, passaram a rejeitar algumas demarcações por causa do chamado “marco”.

Diante dos conflitos gerados, o STF esclareceu em 2017 que o critério era específico do território Raposa Serra do Sol e não valia nos demais casos, mas a “regra” continuou a favorecer os proprietários de terras na luta contra os territórios indígenas.

Com o “julgamento do século”, como o chamam os defensores dos povos indígenas, procuraram resolver definitivamente a controvérsia, pelo menos legalmente.

Para isso, o STF aproveitou um processo local, uma disputa de terras entre os indígenas do povo Xokleng e o governo do sul do estado de Santa Catarina, para dar-lhe “impacto geral”, válido em todas as demarcações.

É por isso que a decisão deste 21 de setembro é “histórica”. Servirá de precedente regulatório para os processos judiciais pendentes que envolvem 226 dos territórios indígenas questionados por alguns dos envolvidos, segundo dados do próprio STF.

Cerca de seiscentos indígenas de todo o Brasil se reuniram em frente à sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, para acompanhar o voto dos 11 desembargadores sobre a limitação de um “marco temporário” para demarcar suas terras, que se tivesse sido aprovado teria afetado a alocação de mais de 200 territórios indígenas e a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas brasileiros (Foto: Carlos Moura/STF).

Conquistas constitucionais

A Constituição de 1988 representou um triunfo para os povos indígenas ao reconhecer o seu “direito original sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, confiando ao Estado a tarefa de demarcá-las e protegê-las.

No Brasil existem 740 territórios reivindicados por povos indígenas, dos quais 500 já foram totalmente demarcados e 66 já foram declarados. Essas últimas [terras] são aquelas já reconhecidas e delimitadas, mas ainda pendentes de aprovação presidencial, o último ato do processo, segundo dados do Instituto Socioambiental, organização não governamental que fornece dados detalhados sobre a população originária.

Outros 174 territórios já foram identificados ou continuam em estudo para futuras demarcações.

As áreas já demarcadas totalizam 119 milhões de hectares, ou 14% dos 850 milhões de hectares do território nacional. Os povos indígenas somam 1,65 milhão de pessoas no Brasil, o que equivale a 0,83% da população total de 203 milhões de habitantes. Cresceu muito desde a década de 1980, quando eram estimados em 250 mil.

A reafirmação da identidade indígena foi o principal fator desse aumento. As novas políticas encorajaram muitos que anteriormente negavam a sua etnia face à discriminação e à violência contra os povos indígenas a declararem-se indígenas.

As terras demarcadas são questão vital para “a reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” dos povos indígenas, reconhece a Constituição.

Mas é um processo lento que leva mais de uma década, às vezes várias, pois enfrenta vários obstáculos, como o “prazo” e a escassez de recursos humanos e financeiros da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, órgão governamental responsável pelas políticas setoriais.

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“Contencioso climático” foi como o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Mauricio Terena, definiu o “marco temporal” do julgamento. Os territórios indígenas beneficiam não apenas os povos indígenas, mas toda a humanidade, constituindo uma barreira contra a destruição da natureza e, assim, contendo o aquecimento global, argumento em várias entrevistas neste mês de setembro.

Advogados indígenas

Terena, que adota como sobrenome o nome de seu povo, é uma entre os mais de 50 advogados que atuaram contra o “marco” naquele julgamento, muitos deles indígenas e outros advogados de organizações como o Instituto Socioambiental e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) ligado à Igreja Católica.

Uma geração de advogados indígenas, como Terena e Cristiane Baré, formou-se em universidades para liderar as lutas de seu povo neste século. Um dos coordenadores da Apib, organização nacional que reúne sete associações regionais, Dinaman Tuxá, também é advogado.

Baré é assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), região onde vive a maior parte dos povos indígenas do país.

“Continuar a mobilização para afastar outras ameaças” é o apelo do líder Tuxá, destacando que o STF ainda deve decidir na quarta-feira, 27 de setembro, sobre a indenização aos proprietários de terras que assumiram parte dos territórios indígenas.

Além disso, o legislativo Congresso Nacional busca impor, por meio de uma nova lei, o marco temporário agora descartado como inconstitucional pelo STF.

É por isso que “a luta continua”, alertaram muitos líderes indígenas e advogados.

Milhares de mulheres participaram de 11 a 13 de setembro, em Brasília, na Terceira Marcha das Mulheres Indígenas em defesa da biodiversidade e da terra. A manifestação ocorreu às vésperas da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal em favor de uma interpretação ampla e não restritiva do mandato constitucional no que diz respeito à demarcação e entrega das terras que correspondem aos povos indígenas (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil).

Outras ameaças

Dois juízes do STF rejeitaram o “marco temporário”, mas seus votos incluíram a necessidade de compensar os proprietários pelas terras que adquiriram de “boa fé”, com propriedade legalmente reconhecida, embora constitucionalmente sejam considerados invasores e só tenham direito a indenização pelas melhorias que acrescentaram à propriedade.

Além disso, outros dois também propuseram que o Congresso aprovasse uma lei que abrisse a possibilidade de atividades econômicas atualmente restritas em territórios indígenas, como mineração e agricultura, sem limitações.

E mais um votou pela transferência dos grupos indígenas para uma “área equivalente”, fora da sua comunidade tradicional, desde que aceitem, quando é muito difícil retirar os “invasores”.

São concessões perigosas aos direitos indígenas, segundo Terena, que podem gerar outros conflitos e afetar as demarcações, principalmente a indenização prévia da própria terra, como apregoa um juiz.

Um consenso sobre a indenização aos proprietários de terras é a questão pendente que os 11 juízes do Supremo tentarão definir antes de encerrar o julgamento no dia 27.

Outra ameaça é o projeto de lei 2.903, que tramita no Senado após a aprovação acelerada na Câmara dos Deputados, que busca impor a restrição do “marco temporal” pela via legislativa, agora em confronto com o STF, ou seja, com o Judiciário.

Legislar sobre o tema é prerrogativa do Poder Legislativo, segundo o relator do projeto, senador Marcos Rogério, do oposicionista Partido Liberal, ao qual Bolsonaro também pertence e é, portanto, dominado pela extrema-direita.

Os legisladores reconhecem que, ao condenar o quadro como inconstitucional, o STF estabeleceu um padrão nacional. Mas isso não sujeita o Congresso, cujas decisões substituiriam a decisão judicial, graças ao seu papel na criação de leis que modificam a legalidade.

Parece apenas um desejo de criar um fato político e manter o tema em questão. Isso porque uma lei ordinária, como a que está em processo legislativo, não se sobrepõe aos ditames da Constituição e será obviamente declarada inconstitucional.

Aos legisladores restaria a alternativa de aprovar uma emenda constitucional, feito improvável, uma vez que exige uma maioria de 60% dos votos de deputados e senadores.

Além disso, sem a certeza de poder entrar em vigor, porque se trata de anulação de direitos fundamentais, que são “cláusula pétrea” da Constituição, ou seja, protegidos de qualquer tentativa de modificação.

Artigo originalmente publicado na Inter Press Service.

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