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Peronismo e Lulismo: O terceiro incluído

Peronismo e Lulismo: O terceiro incluído

O livro ¿Qué Es El Peronismo? De Perón a los Kirchner, el movimento que no deja de conmover la política argentina (1ª ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2019) de autoria de Alexandre Grimson permite ao leitor entender história política da Argentina. É importante o aprendizado, inclusive porque afeta a parceria entre os países vizinhos.

Os peronistas dizem “o peronismo não é trabalhismo e muito menos fascismo, não se define pela ideologia de esquerda ou de direita, mas sim por um sentimento do povo. É sentir-se parte do povo e das políticas garantidoras de seus direitos, uma vida digna e justiça social”. Daí os elitistas o criticam por ser populista!

Explicar o peronismo obriga a escapar da análise unidimensional – direita ou esquerda – para passar para uma abordagem multidimensional. A distribuição das posições dos diversos peronismos poderia abranger todo o arco ideológico, da esquerda à direita.

O peronismo, no passado, estava firmemente ancorado no terço socialmente mais baixo da sociedade. Também adquiriu significado como o popular em oposição ao refinado, o nacional em oposição ao cosmopolita, e o terceiro mundo em oposição ao primeiro.

Um contraste fundamental refere-se à tensão entre dogmatismo e pragmatismo, decisiva para toda análise política, inclusive no Brasil. Aqui, aliados psolistas do Partido dos Trabalhadores criticam-no por ter aprendido a governar fazendo alianças – e não agindo simplesmente com purismo ideológico

Quanto pesam seus princípios e quanto pesam a política real [real politik]? Até qual ponto um candidato, um partido ou um governo opta por escolher (ou arriscar) a sua própria derrota em vez de ceder a pressões reais contra o sectarismo?

Líderes políticos devem estar dispostos a renunciar aos seus ideais para manter ou aumentar o seu poder? Afinal, o que significa “poder”? Significa realizar seus ideais ou conquistar e manter o governo?

Esta tensão principismo-pragmatismo também opõe a ação realizada pela sua repercussão histórica àquela realizada para produzir uma mudança concreta em uma circunstância conjuntural:

  1. há políticos mais preocupados em preservar uma certa pureza ideológica, aguardando a hora, correndo o risco desse momento jamais chegar;
  2. há políticos capazes de mudar o possível no sentido das suas convicções, fazendo acordos com quem for necessário, para serem eficazes e eficientes;
  3. haverá outros capazes de renunciarem logo às suas convicções simplesmente para se manterem no poder.

Existe uma quarta dimensão em todo processo político: o tempo. As identificações políticas nunca são algo fixo. Só existem em certos contextos e situações históricas.

Em cada uma das dimensões mencionadas se muda com o tempo. Os lugares ocupados pela esquerda, pelo centro ou pela direita no peronismo, a relação com as concepções de economia e de democracia, as noções de resistência, de governo, de unidade nacional e muitas outras mudaram, assim como em todas as forças políticas.

Alexandre Crimson se refere à hegemonia no sentido dado por Antônio Gramsci de articulação de alianças capazes de permitirem o direcionamento intelectual e moral da sociedade, a construção de um consenso, renunciando àquilo considerado não essencial, para preservar o essencial. É uma contribuição crucial para pensar a política como construção de consenso e consentimento, como lutas desenroladas no senso comum, ao nível das crenças e dos hábitos dos cidadãos e das instituições.

A questão da eficácia dos projetos políticos implica uma análise da sua capacidade hegemônica. Isto vai além da situação entre esquerda-direita, alto-baixo, purismo-pragmatismo.

As realidades econômicas e os contextos internacionais mudam incessantemente. Logo, juntos com eles, mudam os estados de espírito das sociedades e mudam os pontos de articulação da capacidade hegemônica.

Quanto à tensão entre “purismo” e “pragmatismo”, vivemos em uma “Era Pragmática”. As sociedades celebram resultados em vez de dogmas.

Um bom exemplo é a superação da Teologia da Libertação do catolicismo progressista pela Teologia da Prosperidade do evangelismo reacionário nas periferias das metrópoles brasileiras. O povo quer estratégia de sobrevivência aqui-e-agora – e não a promessa de futuro paraíso, seja no céu, seja no comunismo terreno.

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Quanto ao peronismo, enfrenta também analistas dogmáticos. Buscam o enquadrar na linha esquerda-direita e o consideram idêntico ao longo do tempo.

Assumem a presunção de esquerda-direita ser algo como uma organização “normal” de distribuição política, logo, caso contrário, o peronismo seria uma anomalia. No entanto, esta presunção reducionista não é verificada como uma verdade universal, considerando a diversidade dos “populismos latino-americanos”. Seriam “uma coisa muito estranha”?

Talvez esquerda-direita não sejam categorias úteis caso se pretenda serem absolutas – e não relativas e/ou circunstanciais. Os termos políticos mais poderosos são transformados historicamente. Apresentam heterogeneidade entre países e até dentro de um mesmo país.

Isso nos remete ao peronismo como um termo local. Ele seria incompreensível, em uma visão eurocêntrica, porque não “se enquadra” na sua definição de ideologias.

“Nacionalismo”, por exemplo, tampouco é um monopólio da “esquerda” na América Latina. A oposição entre nacionalistas e liberais atravessou boa parte da história argentina e, na verdade, está relacionada com a tensão peronismo-antiperonismo.

Na América Latina, houve fortes projetos nacionalistas de direita, por vezes ligados ao catolicismo. Houve também nacionalismos com processos redistributivos de esquerda.

Pior, as tendências autoritárias e totalitárias não são monopólios de esquerda nem de direita. Seria toda a esquerda democrática, nacionalista em sentido não exclusivista, cosmopolita no sentido internacionalista?

Essa ou outras definições “perfeitas” podem ser uma escolha de todos os militantes. Mas essa idealização não existe quando se discute com a experiência histórica, com os políticos realmente existentes e com a forma como são percebidos pela sociedade.

Tal como o liberalismo, o comunismo ou o socialismo, segundo Crimson, o peronismo nunca teve um único significado na vida política real. Só pode ser compreendido a partir de uma única definição se a sua heterogeneidade constitutiva for destruída.

Em uma visão eurocêntrica, o peronismo era visto como uma anomalia argentina, um defeito irracional, ao qual se poderia atribuir uma série de conceitos como totalitarismo, fascismo, ditadura. Em compensação, no sentido inverso, partiu-se de uma visão idealizada do peronismo, como fosse a encarnação de uma Argentina autêntica.

Outra possibilidade se abre pela leitura de Crimson: analisar as mil faces do peronismo, ver suas heterogeneidades, promover outras formas de comparação política.

A crítica da “esquerda” ao peronismo está relacionada:

  1. à ausência de transformações estruturais, promovidas pelo primeiro peronismo;
  2. à falta de autonomia da classe trabalhadora por espécie de manipulação; e
  3. à recusa em promover a mobilização popular para deter um golpe de estado.

A crítica esquerdista também opera através de uma comparação entre a sociedade realmente existente e uma sociedade ideal segundo seu credo ideológico. Pior é quando essa comparação entre realidade e utopia é feita a partir da arrogância. Há soberba na certeza de quem exerce a crítica “purista” ao se apresentar como o único sujeito a saber exatamente como construir essa sociedade utópica…

O problema seja da matriz liberal seja da matriz esquerdista não é apenas as suas críticas serem desinteressantes por serem abstratas. A dificuldade para aceitação delas é serem críticas abstraídas da realidade histórica.

Supostamente, o liberalismo ou o socialismo seriam ideologias racionais, com as quais se pode concordar ou discordar, mas elas têm os seus fundamentos lógicos. Por sua vez, o peronismo e o lulismo escaparia à razão e seria regido por uma identificação irracional, emocional e afetiva entre povo e líder. Segundo Crimson, “não existem identidades políticas de massas vazias de afetividade”. Não há processos sociais fora do afeto.

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