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Equador: “Chevron se foi deixando 300 dólares e a selva destruída”, diz Guamán

Equador: “Chevron se foi deixando 300 dólares e a selva destruída”, diz Guamán

Adoración Guamán, a advogada equatoriana-espanhola que denuncia a “arquitetura jurídica da impunidade” no caso da Chevron no Equador. Após ter sido condenada por um tribunal equatoriano, empresa exigiu a indenização do país em tribunal europeu. “As pessoas afetadas pela contaminação, entretanto, ainda não viram um único dólar”, destaca.

POR FERNANDA SANDÉZ

QUITO – A foto é de anos atrás. A mulher – jovem, com cabelos muito escuros – está no meio da selva, mais precisamente na área do Lago Agrio, em plena Amazônia equatoriana. Ela mostra para a câmera uma palma preta e olha, sem sorrir. Também não há razão. O que parece lama muito escura e faz a mão e os dedos desaparecerem em plena luz do dia é, na realidade, óleo.

Foi assim que a gigante petrolífera americana Chevron deixou o local após anos operando ali.  As consequências ambientais e sociais seguem até hoje.

“As pessoas até organizam os chamados ‘passeios tóxicos’ para percorrer a área. Essa foto foi tirada de mim em um desses passeios. Lá, quando você enfia um pedaço de pau no chão, não sai água: sai óleo”, conta do outro lado do Atlântico, Adoración Guamán, a advogada equatoriana-espanhola que há décadas denuncia o que não hesita em descrever como uma “arquitetura jurídica da impunidade”. 

Depois de ter sido condenada em 2011 por um tribunal equatoriano num processo que durou oito anos, contou com seis juízes e acumulou mais de 220 mil páginas, a Chevron acabou por se beneficiar num tribunal holandês. Conclusão: agora é o Equador que deve indenizar a empresa. “As pessoas afetadas pela contaminação, entretanto, ainda não viram um único dólar”, explica.

Além de ativista de direitos humanos, Guamán – a mulher da foto em Lago Agrio – é especialista em comércio internacional, cadeias de suprimentos e escravidão moderna. É professora de várias universidades da América Latina, foi assessora do governo do Equador durante a presidência de Rafael Correa (2007-2017) e há anos luta pela criação de um instrumento jurídico internacional e vinculante capaz de conseguir o que custa tanto: fazer com que as empresas transnacionais que violam os direitos humanos e causam desastres ambientais longe de suas matrizes, respondam por seus atos, reparem as vítimas e não fiquem impunes para sempre. 

Para isso, Guamán – que é professora titular de Direito ao Trabalho da Universidade de Valência, possui dois doutorados e é autora de 75 artigos científicos sobre o tema – faz parte, há uma década, de uma iniciativa com um promissor nome: Campanha para reivindicar a soberania dos povos, desmantelar o poder das transnacionais e acabar com a impunidade. Nada menos. 

“Além disso, desde junho de 2014, a Organização das Nações Unidas votou para avançar na criação de um instrumento nesse sentido”, detalha. 

Qual é o estado deste projeto hoje?

Adoración Guamán — Embora o processo nas Nações Unidas tenha começado em 2014, as lutas populares vinham antes, com os tribunais dos povos etc. O que aconteceu naquele ano foi a aprovação de uma resolução (a 269) para criar um grupo de trabalho, promovido pelo Equador e pela África do Sul, que já realizou oito sessões, e a nona será em novembro deste ano.

Naquela época, em 2014, o Equador queria não apenas liderar a região em direitos humanos, mas também controlar o poder corporativo, um mandato que está em sua Constituição. Tudo isso foi muito marcado pelo caso Chevron.

A ideia do ex-presidente Correa e de seu ministro das Relações Exteriores era garantir que o direito internacional dos direitos humanos pudesse ser modificado para estabelecer instrumentos que permitissem às grandes economias que controlam o mundo ter obrigações e responsabilidades em relação aos direitos humanos e à natureza.

Isso foi apoiado por vários grupos da sociedade civil. Em uma reação sem precedentes e para espanto da União Europeia, eles convocaram uma votação e ganharam. A União Europeia, o Japão e, claro, os Estados Unidos votaram contra. As coisas começaram bem, mas oito anos depois do início ainda há um longo caminho a percorrer.

Por quê? 

Adoración Guamán – Depois das eleições e da guinada à direita no governo do Equador, as coisas começaram a se complicar. Algumas batalhas eles não quiseram – a batalha para conseguir o tratado vinculante, por exemplo – e a América Latina não estava e não está nesta discussão.

Assim, depois de oito sessões, temos um texto que está sendo emendado e a presidência do grupo, a cargo do Equador, deixa muito a desejar. Não soube ou não quis realizar reuniões realmente produtivas.

Nós pedíamos a criação de um comitê ou um tribunal que pudesse penalizar diretamente as empresas, como acontece com a Comissão de Crimes Internacionais, ou mesmo abrir uma sala especialmente dedicada a esse assunto na Corte Internacional de Justiça, como havia proposto a França.

Mas, depois da mudança de governo no Equador e com a chegada ao poder de Lenin Moreno (2017-2021), o documento que havíamos escrito foi descartado — onde havíamos incluído as obrigações para as empresas— e o que foi apresentado foi um texto “sem dentes”.

Um texto em que as empresas não mais figuravam como sujeitos de obrigação direta. Um texto descafeinado que insistia nas obrigações dos Estados e no qual se tirava a primazia dos direitos humanos. Além disso, todas as referências à criação de um tribunal foram eliminadas e quase não houve menção a um comitê. Mas tudo era muito pouco transparente. Nem se sabia quem escreveu esses textos. 

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Até hoje não há sanções internacionais ou justiça para as vítimas, além de algum acordo econômico extrajudicial. O que te faz manter a esperança?

Adoración Guamán – Para mim, há dois claros pontos de esperança. Por um lado, aquele que segue a mobilização social. Em todo o planeta, as organizações sociais estão enfrentando as corporações transnacionais e sua voz é cada vez mais ouvida.

Há 16 anos, nem a mídia, nem os meios acadêmicos davam ouvidos a essas vozes que apontavam para as transnacionais. Aqueles que se manifestaram contra a impunidade ou sobre o poder corporativo global não foram ouvidos.

Hoje, somente com a luta por este tratado vinculante conseguimos colocar na mesa de negociação a existência desses poderes que —como disse Salvador Allende em 1972 (na época presidente do Chile)— são poderes supraestatais, que administram o mundo e para quem é impossível detê-los.

Diante disso, há a luta social e também a academia militante. Mas, ao mesmo tempo, no âmbito nacional, são inúmeras as iniciativas que estão dando algum resultado.

Como quais?

Adoración Guamán – A lei francesa, em matéria de devida diligência começa a dar frutos. O mesmo com o alemão . Na Espanha também estamos elaborando um e na América Latina existem muitas iniciativas regulatórias nesse sentido. Além disso, conquistas estão sendo feitas em tribunais internacionais e em litígios climáticos e de direitos humanos, por exemplo. Isso está funcionando bem.

Existem dados de organizações sociais que levaram uma infinidade de empresas a tribunais internacionais. E eles estão ganhando. Muitas transnacionais foram colocadas na corda bamba e, com acordo vinculante ou não, muito avanço ainda está sendo feito. Está indo devagar e não será fácil, porque isso atinge diretamente o osso duro do capitalismo transnacionalizado. Hoje pode parecer que a impunidade se mantém, mas no âmbito social não é assim.

Que papel têm os consumidores em tudo isto?

Adoración Guamán – Esta é uma questão que temos discutido muito, porque durante muitos anos houve uma tendência, especialmente quando se tornou evidente que a responsabilidade social empresarial era apenas uma reforma, segundo a qual a responsabilidade deveria ser acima de tudo do comprador. No entanto, embora a sensibilização dos cidadãos para o consumo seja muito importante, na verdade, é um dever do Estado que isso aconteça. Não podemos apenas responsabilizar as pessoas pelo consumo de bens que deveriam ser proibidos justamente por serem produzidos com base em graves violações dos direitos humanos ou do meio ambiente. Por quê? Porque quando uma mercadoria ou um serviço é manchado de sangue ou produzido pela destruição da natureza, o Estado tem que fazer alguma coisa. 

Existe um bom exemplo nesse sentido?

Adoración Guamán – A lei holandesa de devida diligência (que ainda não saiu) vai um pouco nessa direção. Ele propõe que os consumidores possam comprar “com tranquilidade”. Dizem, explicitamente, “esta lei é para que os consumidores comprem com tranquilidade”. A minha luta não é para que o consumidor compre tranquilo. O que eu busco é que o Estado se responsabilize pela forma como as empresas importam para vender (em seu território ou em outro), para produzir mais-valia com base na violação de direitos, não importa onde elas sejam cometidas. 

Mas, o que se faz agora que as corporações estão nos governos?

Adoración Guamán – A captura corporativa dos poderes públicos é um fenômeno que, infelizmente para nós, está ocorrendo em todos os lugares. O fato de haver regras que possam garantir que – além dessa captura – haja uma lei, já é alguma coisa. É por isso que as chamo de “leis de trincheiras”, porque elas são sancionadas por governos progressistas para que, quando chegarem governos conservadores, continuem lá. Até que sejam revogadas, pelo menos. Quando estive em governos, dediquei-me a consolidar as políticas sociais. 

Como foi a experiência de litigar contra a Chevron?

Adoración Guamán – Foi o meu primeiro caso nessa matéria e eu me envolvi relativamente tarde, quando já havia ocorrido o primeiro processo. Sou amiga de Pablo Fajardo, o advogado demandado, e eu me vinculei ao caso como parte do Sindicato dos Advogados da Chevron Texaco (Udat).

Tive a oportunidade de trabalhar com eles no campo e foi isso que me trouxe de volta ao Equador. E descobrir a barbaridade cometida pela Chevron fez com que eu me envolvesse ainda mais.

Como é sabido, depois que os atingidos processaram e ganharam em juízo o processo contra a Chevron, em 2011, com sentença final, a empresa se foi, deixando $300 na conta e a selva destruída. E, o cúmulo do absurdo, agora — por decisão de um tribunal holandês, em 2018— é o Equador quem deve pagar. Isso é a impunidade.

Este artigo faz parte da Comunidade Planeta, projeto jornalístico liderado pelo  Periodistas por el Planeta  (PxP) na América Latina, do qual a Inter Press Service (IPS) faz parte. Foto: Imagem: PxP.

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