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Derrota da extrema-direita encerra processo constitucional no Chile

Derrota da extrema-direita encerra processo constitucional no Chile

Continuidade da Constituição “Pinochet-Lagos” afasta tentativa da extrema-direita de conferir um status constitucional a administradores privados de fundos de pensão e contribuições de saúde, entre outras…

Por GUSTAVO GONZÁLEZ

SANTIAGO – O Chile encerrou neste domingo, 17, um longo e infrutífero processo para uma nova Constituição, com um plebiscito em que triunfou a opção “Contra”, com uma rejeição contundente de 55,76% dos eleitores à proposta de um Tribunal Constitucional do Conselho controlada pelo Partido Republicano, de extrema-direita.

A busca por uma Carta fundamental “nascida na democracia”, para substituir a imposta em 1980 pela ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), começou em novembro de 2019 e foi encerrada após duas eleições constituintes e dois plebiscitos que tiveram em comum o fracasso dos respectivos projetos constitucionais, de sinal contrário.

O presidente Gabriel Boric ratificou, na noite de domingo, e durante o seu governo, o fim desta maratona de processo constitucional que “estava destinado a trazer esperança e finalmente gerou frustração e até tédio numa parte relevante dos cidadãos”.

«Com isto quero deixar claro, durante o nosso mandato o processo constitucional está encerrado. As emergências são diferentes”, sublinhou o líder de esquerda, de 37 anos, que apelou pelo progresso nas reformas dos sistemas de pensões e de saúde, na luta contra o crime organizado e o tráfico de droga, e por num pacto fiscal que gere recursos para alcançar esses objetivos.

No plebiscito, que possui votação obrigatória, 84,4% dos cadernos eleitorais foram às urnas. A opção “Contra” prevaleceu com 55,76% dos votos válidos e venceu em 13 das 16 regiões do país. A opção “A favor”, com 44,24%, só triunfou nos tradicionais bastiões agrários e conservadores do centro do Chile e na conflituosa região da Araucânia.

As sondagens antecipavam a vitória do voto “Contra”, embora a extrema-direita alimentasse esperanças de uma surpresa da “maioria silenciosa”, o que não ocorreu. Assim, o resultado foi recebido sem alarde, embora nos círculos progressistas e especialmente nas organizações feministas a derrota da apelidada “Kastitution” tenha sido recebida com alívio.

Esse foi o apelido dado à proposta do Conselho Constituinte que incluía as propostas de José Antonio Kast, líder do Partido Republicano de extrema-direita, que, na verdade, subordinou os partidos que se definem como de centro-direita: a Renovação Nacional, o Independente União Democrática e Evópoli (Evolução Política).

Uma direita crescida… e derrotada

A campanha “A Favor”, que recebeu contribuições financeiras milionárias, contou com o apoio dos presidentes dos sindicatos empresariais, bem como dos dissidentes dos Democratas-Cristãos, agrupados no Partido Democrata; e dos Amarelos pelo Chile, um grupo diversificado que surgiu em oposição ao projeto constitucional anterior, de caráter progressista, rejeitado no plebiscito de setembro de 2022.

Embora a Democracia Cristã tenha optado “Contra”, das suas fileiras, o ex-presidente Eduardo Frei Ruiz-Tagle (1994-2000) defendeu “A favor”, juntamente com o ex-presidente de direita Sebastián Piñera (2010-2014 e 2018-2022). A ex-presidente socialista Michelle Bachelet (2006-2010 e 2014-2018) e o ex-presidente social-democrata Ricardo Lagos (2000-2006) fizeram campanha pela opção “Contra”.

Kast e outros líderes de direita reagiram à sua derrota com apelos para virar a página, demonizaram o surto social de 2019 que abriu caminho ao processo constitucional e apelaram ao governo Boric para “trabalhar e cuidar dos problemas reais das pessoas”.

Estas reações não foram suficientes para esconder a frustração dos republicanos e dos seus aliados, que se consideraram fortalecidos pela adesão do Partido Democrata e dos Amarelos à sua proposta, e que ainda nos dias anteriores à votação levantaram a ideia de que este plebiscito seria também um julgamento para o governo Boric.

Houve ainda um setor de extrema-direita, liderado pelo senador Rojo Edwards, desfiliado do Partido Republicano, que votou “Contra”, e agora se orgulha de ter preservado a constituição do ditador Pinochet com seu cunho neoliberal, atribuindo ao Estado um papel subsidiário e ignorando-o como garantidor de direitos sociais.

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A verdade é que a Carta Magna imposta num plebiscito irregular em 1980 teve inúmeras alterações desde o fim da ditadura em 1990. As reformas mais importantes aconteceram em 2005, a ponto de se falar em “Constituição Pinochet-Lagos” em referência ao presidente Ricardo Lagos.

Assim, a continuidade daquela Constituição é, em última análise, aceitável para as duas coligações com as quais Boric governa desde março de 2022: “Aprovo a Dignidade”, integrada pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista, e o “Socialismo Democrático”, cujos eixos são o Partido Socialista e o Partido para a Democracia.

Republicanos na órbita de Trump e Milei

No final, quem melhor ilustrou o significado da rejeição da “Kastitution” foi a advogada independente Verónica Undurraga. “A vitória do ‘Contra’ não é um resultado para comemorar, mas é o resultado menos ruim de um processo que infelizmente não terminou bem”, disse ele à rádio Cooperativa.

Acrescentou que, por parte da direita, “houve uma aposta bem pensada neste processo de seguir fórmulas muito comprovadas nos Estados Unidos ou na Argentina: procuraram aprová-la (a sua proposta constitucional) com um discurso extremamente agressivo e uma desqualificante campanha”, disse em alusão aos estilos de Donald Trump e Javier Milei.

Undurraga presidiu a chamada Comissão de Peritos, que deveria salvaguardar os consensos anteriores dos partidos políticos e aconselhar o Conselho Constituinte. Contudo, a maior parte de suas recomendações foram ignoradas pelos assessores republicanos para a elaboração da proposta derrotada neste último plebiscito.

Em resumo, o mais importante na continuidade da carta fundamental “Pinochet-Lagos” foi afastar a tentativa da extrema-direita de conferir um status constitucional a administradores privados de fundos de pensão e contribuições de saúde, bem como a tentativa de colocar as leis nacionais antes dos tratados internacionais.

Também foi fundamental a rejeição dos artigos de “defesa da vida do nascituro”, que colocavam em risco a validade da lei aprovada após longas lutas feministas no governo Bachelet, que estabelecia três fundamentos para a aprovação do aborto: o estupro, a inviabilidade de feto e o risco à saúde da mãe.

Outra proposta que suscitou grande rejeição foi a de libertar a “primeira casa” do pagamento de impostos, o que favorecia os setores de elevado rendimento nos municípios mais ricos, e impedia a arrecadação de recursos gerais para obras sociais nas comunidades mais pobres.

Tal como na Odisseia, o processo constitucional chileno tornou-se um manto de Penélope cujo tecido foi montado e desmontado num tear de proselitismo, que acabou trazendo descrédito a uma classe política desvalorizada, incapaz de chegar a acordos e de submeter os cidadãos a polarizações.

Terminado este longo capítulo, o destino do Chile, de 19 milhões de habitantes, permanece numa espécie de limbo, onde pelo menos o eleitorado terá uma folga, enquanto as comunidades políticas terão tempo para pensar nos confrontos futuros.

Os efeitos desses julgamentos constitucionais fracassados ​​e as lições deles tiradas podem ser medidos dentro de 10 meses, em 24 de outubro de 2024, com as eleições de governadores e conselhos regionais, e as de prefeitos e conselhos municipais.

Elas serão o preâmbulo das eleições gerais de 16 de novembro de 2025 que incluirão: o primeiro turno das eleições presidenciais, a renovação total da Câmara dos Deputados e de metade do Senado. Será o último desafio nas urnas do governo Boric, cujo mandato terminará em março de 2026.

Artigo publicado na Inter Press Service.


“Nem comemoração, nem arrogância, bola no chão, humildade e trabalho”, pediu o presidente Gabriel Boric na noite deste domingo, 17, após o fracasso da proposta de texto constitucional pilotada pela extrema-direita no Chile. Imagem: José Humberto Campos / Agência Um.

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