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A Abolição que não valeu

A Abolição que não valeu

O documentário do diretor, roteirista e produtor Renato Barbieri está sendo distribuído e apresentado nas salas de cinema, esta semana, com um provocador cartaz que também é uma exortação: “Abolição já! A outra não valeu”. Autor do belo filme Pureza, de 2018, um dos cinco curtas, médias e longas-metragens que já realizou, Barbieri volta a chamar a atenção para um assunto que se encontra em debate urgente. Assim como ocorre com chagas como racismo, o abismo da desigualdade social e econômica no país, os preconceitos de gênero e a crescente violência na nossa vida cotidiana e política, trata-se de uma das feridas que começaram a ser discutidas abertamente, expostas há pouco tempo e inaceitáveis no mundo autodenominado civilizado de agora. O assunto é a forma da escravidão moderna no Brasil.

O documentário Servidão, de Barbieri, trata desse tema: a escravização moderna, resíduo da escravatura do século 19 e, segundo comentário do diretor em entrevista à Agência Pública, o filme”é uma peça de resistência que fizemos para fortalecer o movimento abolicionista brasileiro contra a escravidão contemporânea; porque o cinema tem uma função social importante: a de mobilização e de engajamento”.

Nada mais oportuno do que Servidão chegar às telas esta semana, chamando a atenção para os 20 anos da data de 28 de janeiro, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.

Uma data instituída em homenagem aos auditores fiscais do trabalho Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e ao motorista Aílton Pereira de Oliveira, mortos em 28 de janeiro de 2004 quando investigavam denúncias de trabalho escravo em fazendas na cidade de Unaí, em Minas Gerais, a 600 quilômetros de Belo Horizonte. O episódio é conhecido como a chacina de Unaí.

Com forte marca jornalística e uma montagem enxuta de Neto Borges, codiretor do filme que segue perfil semelhante ao do festejado e premiado documentário Pureza, Servidão é um registro rico em informação, em particular para as plateias das grandes cidades que praticamente desconhecem ou fingem desconhecer a escravidão moderna que grassa no país, no campo e, atualmente, também nos grandes centros urbanos.

Barbieri tem 40 anos de carreira, trabalha em Brasília e já realizou filmes e séries sobre temas ligados à negritude, à africanidade e escravidão moderna como é o caso de Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás.

Agora, este seu trabalho é pontuado por atuações de escravizados que relatam suas experiências com objetividade, sem vitimização, autocomplacência ou oportunismo. Outras entrevistas, claras e determinadas, são de abolicionistas de vários matizes, “muitos deles que até arriscam a vida, e outros que perdem a vida defendendo a liberdade, defendendo a Constituição e defendendo os direitos humanos”, ressalta Barbieri.

As entrevistas mais contundentes que constam do filme são as dos fiscais do trabalho agrupados por Barbieri e Neto Borges.

Um deles comenta: “A elite tem uma postura antissocial e escravocrata”. Outro põe o dedo na ferida escamoteada: “As mudanças realizadas com feições modernas sempre estão sob o controle da elite”. E mais um: “A elite é a dona dos meios de produção, inclusive dona dos trabalhadores”. E concluindo: “O Brasil é um dos países mais ricos do mundo. Mas não somos os mais prósperos”.

Como se pode ver no trailer abaixo, Servidão fala de uma “elite truculenta e cruel” que se vale do trabalho de quem necessita no mínimo se alimentar, a si e à família, para sobreviver e para não morrer de fome. Elite manipuladora do ser humano como se ele fosse, para os seus membros habitantes de um universo vampiresco e explorador, “apenas uma mercadoria”.

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A cadeia do descalabro, mostra o filme, é composta de “trabalho escravo, desmatamento, grilagem e morte no campo”.

O foco nele é a Amazônia e as realidades que sustentam a escravidão de hoje, como salientam os diretores: “Pilar econômico, pilar social, pilar cultural. A profunda desigualdade brasileira alimenta a prática e atinge sempre os mais vulneráveis”. Mas a raiz é racial. Racista.

“Um documentário como esse, ao inundar a população de informação, acaba adubando ações da sociedade civil, políticos e empresários, exatamente para desferir um golpe no coração do trabalho escravo moderno”, comenta o jornalista Leonardo Sakamoto, um dos entrevistados.

Outra testemunha, o frei dominicano Xavier Plassat, da Conferência Pastoral da Terra e da Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo do Tocantins (Coetrae – TO), destaca: “A permanência do trabalho escravo em nosso meio coloca cada um de nós perante um radical desafio porque questiona nossa própria humanidade: se o outro pode ser tratado pior que animal, quem sou eu então?”.

Alguns do elenco de entrevistados – juízes, auditores, procuradores, ativistas, agentes da sociedade civil e de movimentos sociais, jornalistas, trabalhadores escravizados, ex-gatos” (aliciadores de mão de obra) – que participam de Servidão: Victor Leonardi, escritor, professor de História e pesquisador; Rafael Sanzio dos Anjos, professor da Universidade de Brasília e autor de estudos sobre matrizes africanas; Alberto da Costa e Silva, diplomata e historiador brasileiro, Ana Maria Gonçalves, escritora; Marcelo Gonçalves Campos, auditor fiscal do Trabalho e historiador; Leonardo Sakamoto, jornalista, escritor e cientista político; Ela Wiecko, jurista, vice-procuradora-geral da República, do Ministério Público Federal e professora da UNB; João Roberto Ripper, fotógrafo documentarista e fotojornalista; Fabrícia Carvalho, assistente social e professora.

Há também depoimentos de Cláudio Secchin, auditor fiscal do Trabalho; Binka Le Breton, escritora; Gildásio Silva Meireles, Sebastião Gonçalves e Aldemir Pereira, trabalhadores rurais; Xavier Plassat, frade dominicano; Carlos Haddad, juiz Federal; Lelio Bentes, presidente do TST; e como auditores fiscais do Trabalho, Valderez Monte, Calisto Torres, Rachel Cunha e André Roston.

Mas o principal personagem do longa, com uma hora e 12 minutos e narrado pela atriz Negra Li, é Marinaldo Soares Santos, escravizado 13 vezes e libertado em três ocasiões pelos grupos móveis de fiscalização.

Convém lembrar que embora condições de trabalho análogas à escravidão sejam consideradas crime previsto pelo Código Penal Brasileiro, esse regime é praticado no Brasil há cinco séculos. A Lei Áurea aboliu a escravidão clássica que permitia o direito de propriedade e comércio dos escravizados, mas não chegou a transformar as relações usurárias e abusivas de trabalho entre patrão e trabalhador que perduram até hoje.

Concluindo: Barbieri defende que “o combate à escravidão moderna só será possível com a participação de toda a sociedade”. “Está na hora”, diz ele, “de a nossa geração assumir essa missão para si e começar a escrever um novo livro do Brasil. Não é nem escrever uma nova página; é escrever um novo livro, um livro de uma nação livre”. Sem qualquer traço nem resíduo de escravatura nem escravidão escamoteada ou sem a fiscalização devida.

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